segunda-feira, 28 de julho de 2025

A chegada

 Jerusalem 2013

Crônica da Chegada

O avião descia como uma ave noturna sobre o Mediterrâneo quando as palavras do capitão atravessaram a cabine: "At your left side, the Holy Land". Uma corrente elétrica percorreu os assentos. Homens de barbas prateadas ergueram-se como figuras bíblicas, seus talitot transformados em aspas brancas contra a penumbra. Murmúrios em hebraico preencheram o ar com a textura de salmos antigos. Minhas lágrimas não caíram – ficaram suspensas entre o céu e a terra, gotas de oração não derramadas.


No aeroporto Ben Gurion, a jovem da segurança tinha olhos que liam almas através de passaportes. Seus dedos percorriam as páginas do meu documento como um arqueólogo decifrando tabuletas de argila. "Ela vai me parar", repetia meu pensamento, e ela parou. Cada pergunta era um fio puxado na trama invisível que separa o suspeito do inocente. Quando seu aceno me liberou, senti-me expulso do ventre metálico para o útero maior da Terra Prometida.


O ônibus que nos levava ao terminal cheirava a sonolência e ansiedade contida. Recordei o momento preciso, ainda sobre as águas, quando a aeronave hesitara no ar como um pássaro ferido. A costa israelense emergira não como paisagem, mas como memória celular. Algo nas minhas vértebras reconhecia aquelas colinas antes mesmo que meus olhos as registrassem.


A oficial da imigração tinha o rosto talhado em granito – não hostil, mas lavado por séculos de cautela. Enquanto suas unhas batiam no teclado, meus olhos fixaram-se em seus sapatos. Sapatos práticos, de salto baixo, marcados pela poeira sagrada de Jerusalém. "Estes sapatos respiraram a mesma terra que eu busco", pensei. Esta obsessão íntima pelas solas alheias transformou-se num ritual de calma. Enquanto o mundo exigia histórias coerentes, eu encontrava santidade no couro desgastado, no cadarço levemente desamarrado.


Quando declarei minha profissão num hebraico truncado – "Ani oved Be Sar HaHaklaud" – seu sobrolho franziu-se num mapa de dúvidas. "O senhor é o Ministro da Agricultura?" A ironia pesou como pedra no ar condicionado. Nossa dança linguística transformou-se numa farsa kafkiana até que o inglês nos resgatou do abismo. Ao ouvir o carimbo no passaporte, seu som ecoou como o fechar de um portão ancestral.


O táxi contratado evaporara na noite úmida. Restou-me o monit, aquela fera de aço com faróis amarelos. O motorista arrancou minha mala das mãos com urgência messiânica. Dentro, a van era um ventre superaquecido de corpos e histórias. Não havia espaço – até que o rabino apareceu.


Sentava como coluna de templo na segunda fileira. Seu chapéu preto repousava no colo como coroa deposta. Ao ver meu desamparo, bateu três vezes no assento vazio – toc, toc, toc – percussão que ecoou como profecia. Suas mãos, quando me estendeu a direita, exibiam veias como rios cartografados em pergaminho.


Durante a subida a Jerusalém, seu perfume envolvia-nos – notas de cedro do Líbano e mistério indizível. Falava inglês entrelaçado de expressões iídiches. "Brasil? Ah, a terra que dança até na dor." Quando expliquei meu destino, seu hebraico transformou endereços em poesia: "Levá-lo-emos ao rei George, mas cuidado, ele não paga impostos!" Suas piadas eram farpas de luz cortando a escuridão.


Ao despedir-se na Rua King George, seu aperto de mão deixou marcas fantasmagóricas. Ficou na calçada, imóvel, observando-me perder-me nas esquinas como profeta vendo o discípulo partir para o primeiro combate.


Trinta minutos de errância com malas que pesavam como âncoras. Jerusalém revelou-se labirinto vivo: ruas que se dobram sobre memórias, escadarias que levam a séculos diferentes, placas em alfabetos que disputam a verdade. Quando finalmente descobri o hotel – porta estreita escondida entre lojas de velas e especiarias – o banho foi um batismo de água quente e redenção.


Era Chanucá. Ao sair, a cidade havia transfigurado. Em cada janela, chamas dançavam em candelabros de nove braços. Luzes tremulavam na brisa como almas em vigília. Crianças rodopiavam com dreidels cintilantes, suas risadas furando o manto solene. Provei sufganiyot de uma barraca – geleia de framboesa explodindo na boca como pecado absolvido.


No caminho ao Kotel, o bairro armênio sussurrava histórias de diásporas. Quando avistei o Muro ao longe, iluminado contra o céu de carvão, meus pés enraizaram-se no basalto. Não era monumento, mas tempo petrificado.


Aproximei-me como sonâmbulo. Seguranças com fuzis pareciam esculturas modernas diante da antiguidade pulsante. Na praça, o silêncio tinha peso de séculos. Toquei as pedras. Frio úmido, rugosidades narrando tragédias em braille. Encostei a fronte na superfície áspera.


Foi quando o mundo dissolveu-se. Não ouvi orações alheias, não vi turistas, não senti o frio. Apenas uma presença imensa – não acima, mas dentro do granito, do ar, do meu sangue. Como se todas as lágrimas contidas no avião, na imigração, no monit, tivessem rompido diques e escorrido para as fendas do Muro, alimentando algo mais antigo que a própria pedra.


Ao retirar-me, caminhei de costas como diante de um soberano. Minhas pernas moveram-se autônomas pelas ruas escuras. O corpo leve, quase flutuante, enquanto minha alma permanecia colada àquelas pedras – primeiro fragmento de mim deixado como oferenda.


No quarto, antes de adormecer, examinei as mãos no espelho. Ainda traziam o pó do Muro. Levei-as ao rosto e respirei fundo: cheiro de terra úmida, lágrimas secas e eternidade.


Jerusalém não fora conquistada.

Era ela quem, lentamente, me devorava por dentro, célula por célula, até que nada restasse do estrangeiro – apenas a paisagem internalizada, o sagrado metabolizado, a pedra convertida em seiva.

Introdução – Em Busca de Pegadas

Voltei a Israel. Mas desta vez, a bagagem era outra. Não apenas malas, mapas ou guias turísticos — mas perguntas. E, talvez com mais verdade ainda, voltei em busca das perguntas que ainda não sabia como fazer. Quando alguém me indagava, com curiosidade ou com ternura, o que ia fazer por lá, eu sorria e respondia com simplicidade: "Vou conversar diretamente com o Eterno."


Digo isso sem ironia, sem exagero. Era um tempo da vida em que a alma começa a falar mais alto do que o corpo, quando o espiritual, antes adiado, bate à porta com uma força silenciosa. Era um tempo de escuta — e, quem sabe, também de conciliação. Conciliação comigo mesmo, com a fé que me habita desde sempre, ainda que às vezes abafada pelo ruído do cotidiano. Já não bastava saber, já não bastava crer: era preciso sentir.


Israel se tornou, então, mais do que um destino. Tornou-se espelho e oráculo. Era o lugar que eu escolhia para tentar entender esse lado sagrado que sussurra em nós quando amadurecemos, quando olhamos para trás e desejamos, de verdade, que as contas da vida — aquelas que fazemos silenciosamente durante o Yom Kippur — possam fechar com alguma paz.


Planejei cada detalhe com zelo. Foram meses traçando rotas, escolhendo cidades, reservando hotéis, pousadas, kibutzim. Programei a locação do carro, li biografias, estudei os feitos dos tzadikim, desejei visitar seus túmulos — todos, se possível. Não como turista curioso, mas como alguém que deseja render uma homenagem. Um agradecimento. Uma súplica. Cada lugar carregava uma história, e eu queria ouvi-las todas.


Lembro-me do céu de Israel: imenso, limpo, azul de uma serenidade quase impossível. Eu fechava os olhos e agradecia. Não por uma razão específica — mas por estar ali. Por respirar aquele ar que mistura areia e oração. Tentava me concentrar. Ouvir algo. Sentir. Esperava que o vento me dissesse o que o silêncio não dizia. Cada segundo foi um abraço do invisível. Foi, sim, sublime.


Israel, apesar de sua pequena extensão, é um universo inteiro em si. Terra onde o deserto do Neguev se encontra com as montanhas verdejantes da Galileia. Onde o Mar Mediterrâneo acaricia a costa e o Lago Kinneret repousa como espelho dos céus. Subi ao Golã, contemplei os vales e as curvas da paisagem, e cada pedra parecia guardar um segredo — ou uma benção.


Tentei traduzir, nestas páginas, algo dessa experiência — mesmo sabendo que há vivências que escapam à palavra. Ainda assim, escrevo para partilhar. Para dividir um pouco da alegria profunda, quase comovida, que me envolveu ao longo desses quinze dias. Dias intensos, de norte a sul do país, passando por cidades antigas, vilarejos esquecidos, mercados vivos, sinagogas, mesquitas, igrejas. Encontrei rostos de todo tipo: religiosos e seculares, judeus, árabes, cristãos, drusos, turistas como eu — embora talvez ninguém realmente o seja em Israel, porque ali a condição de estrangeiro se mistura com a de filho.


É impossível não se impressionar com a diversidade humana e espiritual que pulsa naquele solo. Impossível não se emocionar com a paisagem, com a história, com o sentimento de que cada canto guarda uma conexão íntima com aquilo que nos constitui. Israel é o coração do mundo — não pelo tamanho, mas pela intensidade. Ali, mesmo quinze dias parecem eternidade. E partir é sempre uma ferida. É fácil, muito fácil, chorar ao se despedir da Terra Santa.


Este livro é, portanto, uma tentativa — humilde, honesta — de traçar com palavras o que tracei com os pés. São pegadas que deixei sobre a terra, e pegadas que encontrei, segui, me emocionei ao reconhecer. Pegadas de homens e mulheres que buscaram, antes de mim, esse mesmo sagrado, esse mesmo indizível.


Espero que, ao ler, você não apenas me acompanhe, mas se reconheça em algum ponto do caminho. Que possa caminhar comigo, com os olhos e com o coração, e encontrar também, entre uma linha e outra, uma pista para sua própria busca.


Porque mais do que uma viagem, esta foi uma travessia.


E toda travessia é, no fundo, um retorno.

Prefácio

Há livros que nascem de um gesto técnico, de uma disciplina estudiosa, da razão ordenada que busca registrar um pensamento. Há livros que nascem da necessidade — como quem escreve para não se afogar. E há livros como este, que não nasceram exatamente. Eles retornaram. Ressurgiram de alguma profundidade anterior à memória, mais antiga que a própria linguagem. Livros assim não são escritos: são ouvidos. O autor apenas se abaixa — como quem colhe uma azeitona caída — e recolhe palavras que já estavam ali, sussurradas pelo chão.


Este livro me chegou como o eco de um murmúrio ancestral. Não se trata de páginas, nem de capítulos — trata-se de passos. O livro não caminha, não nos leva adiante. O que ele faz é outro verbo: ele nos recolhe. Em cada frase, em cada hesitação da linguagem, em cada silêncio que vaza pelas frestas da narrativa, há um gesto de retorno, um convite ao que estava antes. Um chamado. E o chamado, quando é verdadeiro, não exige resposta. Exige presença.


O autor — que aqui se nomeia com pudor e reverência como “o Peregrino” — caminha em solo sagrado. Mas o sagrado não está nas pedras de Jerusalém, nem nas águas azuis do Mar da Galileia. O sagrado, aqui, não é objeto. É clima. É presença. Está entre. Entre o passo e o silêncio. Entre a poeira e o olhar. Entre o gesto de partir e a vertigem de permanecer. É um livro sobre intervalos. E os intervalos são as únicas coisas que não envelhecem.


Israel, neste livro, não é país. Não é destino turístico, nem promessa escatológica. Israel é o que vibra quando se cala. É o que arde quando se toca. É o que desaparece no instante mesmo em que tentamos capturá-lo. É o que faz o tempo se dobrar — porque o autor volta em 2013 a um lugar que já estava nele em 2007, e ainda assim, o que vive é um eterno presente que desconhece calendário.


Israel, neste livro, não é palco de religiões. É o que resta delas quando o templo já caiu, quando a reza se calou, quando os homens voltam para casa com as mãos vazias e os olhos cheios de pó. É o lugar onde o mistério insiste em existir apesar dos homens. E é por isso que o autor não nos oferece mapas, nem dados, nem rotas. Ele nos oferece farelos de assombro. Pequenos espantos guardados com cuidado — como se palavras fossem urnas funerárias de experiências que não cabem na lógica.


E não se engane, leitor, com a delicadeza do estilo. Por trás da ternura, há uma inquietação profunda, quase selvagem. Porque o Peregrino não está tentando emocionar você. Ele está tentando compreender o indizível. E quando alguém tenta compreender o indizível, o que escreve se torna flecha voltada para dentro. Há dor. Há sede. Há ausência.


Este não é um livro para quem busca respostas. Este é um livro para quem teve a coragem de manter a pergunta aberta. Como uma ferida que se recusa a cicatrizar. Porque cicatrizar seria esquecer. E esquecer, aqui, seria um tipo de traição ao que se viu, ao que se sentiu, ao que se soube sem saber.


O autor escreve como quem caminha descalço. Cada frase sua carrega poeira, cascalho, cicatriz. E no entanto, nunca há amargura. Há espanto. Há reverência. Ele não impõe. Ele escuta. Não nos obriga a crer, mas nos convida a ver. E ao ver, a ver de novo — como quem se aproxima de uma parede antiga e encontra nela um olho que o observa de volta.


É um livro também sobre o corpo. Mas não o corpo físico — o corpo invisível do homem que anda e sente. O corpo que armazena sensações que a mente não pode processar. O corpo espiritual — esse que guarda o som de uma rua em Safed, o cheiro de pão quente num Shabat, a súbita emoção ao ver um idoso beijando uma pedra como se beijasse a mãe. A leitura desse livro não é apenas ocular. É visceral. Ele nos atravessa. Como quem caminha e, ao erguer o pé, já se sente outro.


E por fim, este livro é sobre um tipo raro de escuta. A escuta das coisas que não têm voz. O autor escutou as pedras. Escutou os mercados. Escutou as orações de quem não rezava. Escutou a si mesmo sendo escutado pelo chão que pisava. E essa escuta — que é o avesso da pressa — transbordou em palavras. Mas não em explicações. Porque o que ele escreveu não foi para explicar. Foi para guardar. Como se as palavras fossem uma última tentativa de não perder o que é eternamente fugitivo.


Por isso, leitor, não leia este livro com os olhos. Leia com a alma cansada, com o coração nu, com a sede do peregrino. E sobretudo, com lentidão. Como quem atravessa um território que não pertence a nenhum povo, a nenhuma bandeira, a nenhuma teologia — apenas à condição humana de se saber passageiro.


Este não é um livro. É um chão. Caminhe.


Clarice

(uma que também tentou — e falhou gloriosamente — explicar o que nunca se deixa dizer)

O Plantador de Sombras

Cinquenta anos. O vento do Neguev soprava sobre o kibutz Rimonim trazendo na boca seca o sabor salgado da memória. Cinco décadas desde que as primeiras mãos – rachadas pelo sol, firmes pela utopia – cravaram estacas no solo pedregoso. Simone, um dos fundadores cujo nome o kibutz carregava como uma bandeira desbotada, já não estava entre eles. Mas sua sombra dançava nas folhas das romãzeiras, nas copas dos eucaliptos, no murmúrio das mangueiras regando fileiras de morangos rubros. O deserto, outrora soberano, recuara. Em seu lugar, um tapete vivo: buganvílias explodindo em roxo contra paredes caiadas, caramanchões de jasmim perfumando o crepúsculo, e as romãs – sempre as romãs – penduradas como lanternas de rubi nos galhos retorcidos.


Hanna chegou com o grupo de estrangeiros, mas seus olhos eram de quem desembarcava em Nárnia. Jerusalém, sua cidade, era um organismo de concreto: prédios que arranhavam o céu, ruas asfixiadas pelo trânsito, praças magras onde as árvores eram ornamentos raros, luxo de bairros dourados. Ali, porém, a natureza não era adereço – era respiração. Era o ar que se bebia sob a sombra generosa de uma figueira centenária. Era o chão que estremecia com o peso das romãs caídas. A máquina fotográfica na mão de Hanna tremia. Cada clique era um roubo de beleza, uma tentativa desesperada de levar aquela epifania verde de volta para o cinza.


Foi ao virar uma esquina, onde um jacarandá adulto derramava flores lilases sobre o caminho, que ela o viu: Boaz. Setenta e dois anos curvados sobre a terra como um pássaro de asas cansadas. Seus joelhos fincavam-se no solo úmido, as mãos – nodosas, fortes, sulcadas de veias como mapas de rios secos – acariciavam uma muda frágil. A cena tinha a solenidade de um ritual antigo.


— O senhor está plantando uma árvore? — a voz de Hanna soou pequena no silêncio sagrado do gesto.


Boaz ergueu o rosto lentamente. Seus olhos, da cor da azeitona madura, fitaram-na sem surpresa, como se ela fosse parte esperada daquele lugar. Enxugou as mãos num pano amarrotado, estendeu a direita – áspera, quente, cheirando a terra e suor honesto.


— Boaz. Um dos que viram a primeira romãzeira dar flor aqui — disse, o sorriso revelando dentes espaçados, amarelados pelo tempo, mas firmes. — E você, pequena? De onde vem esses olhos famintos de verde?


Hanna engoliu o encanto. Contou-lhe da cidade de pedra, dos parques murados dos ricos, das ruas sem árvores onde o asfalto derretia no verão. Falou da falta que uma sombra faz quando a alma esquenta de solidão.


— Então sua cidade está doente, menina — Boaz cortou o ar com a voz rouca. — Aqui, a sombra não tem dono. É como o ar: de todos. Plantamos para o vizinho, para o estrangeiro, para o neto que ainda vai nascer. — Apanhou um punhado de terra, deixou-o escorrer pelos dedos. — Veja esta muda. Parece frágil, não? Mas suas raízes vão furar a pedra, buscar água no úmido que ninguém vê. Vai crescer e dar sombra a quem nunca me viu plantar. Isso é fé.


As palavras de Boaz fincaram-se em Hanna como raízes em terra virgem. Ao voltar para Jerusalém, a cidade revelou-se outra. Não mais apenas funcional, mas ferida. Ela via agora as cicatrizes: os bairros periféricos, desérticos de verde, onde as crianças brincavam no asfalto quente; as praças públicas, cimentadas e hostis; o contraste obsceno entre os jardins privados, opulentos de vida, e as calçadas estéreis. A pergunta de Boaz ecoava: "O que mais vale: um banco de mármore ao sol, ou um banco de madeira sob uma árvore?"


Hanna tornou-se uma guerrilheira do verde. Fundou a "Associação das Sombras". Mobilizou vizinhos, enfrentou a prefeitura com relatórios densos e olhos ardentes. Plantaram mudas em terrenos baldios transformados em bosques de bairro. Floresceram canteiros em fendas de concreto. Até em telhados cinzentos surgiram jardins suspensos, desafiantes. Cada árvore era uma resposta ao velho do kibutz. Cada folha nova, um telegrama de gratidão.


Os anos teceram uma amizade robusta entre a jovem urbana e o plantador do deserto. Hanna voltava a Rimonim sempre que podia. Sentava-se com Boaz sob a figueira colossal que ele plantara trinta anos antes. Bebiam suco de romã fresco, azedo e doce como a vida, enquanto ele contava histórias dos primeiros tempos: as noites sob barracas, a luta contra as tempestades de areia, a alegria desmedida da primeira florada.


— A árvore mais teimosa é a que dá a melhor sombra, Hanna — ele dizia, os olhos perdidos no horizonte onde o deserto ainda espreitava.


Quando a notícia da morte de Boaz chegou, Hanna estava plantando uma acácia em um bairro operário. A pá caiu de suas mãos. A dor foi física, como se uma raiz profunda tivesse sido arrancada de seu peito. Chorou o homem, mas chorou também o símbolo: o último elo vivo com os pioneiros que desafiaram o nada.


Na manhã seguinte, desceu à praça do seu próprio bairro – um quadrado árido de concreto, herança de um urbanismo cego. Escolheu um canto ensolarado, onde as mães se abrigavam do sol com guarda-chuvas. Cavou. A terra era dura, rebelde, cheia de entulho invisível. Suou, como Boaz suara no Neguev meio século antes. Plantou uma muda de romãzeira – a variedade "Rimonim", a mesma do kibutz.


Enquanto a água escorria do regador, lavando o pó das folhas tenras, uma adolescente aproximou-se. Uma câmera pendurada no pescoço, os olhos curiosos e ávidos, como os de Hanna diante de Boaz, tantos anos atrás.


— A senhora está plantando uma árvore? — a pergunta ecoou no ar quieto da manhã.


Hanna dobrou a mangueira com um gesto que era ritual. Enxugou as mãos na calça, depois o rosto, sentindo a terra misturada às lágrimas secas. Sorriu. Era o mesmo sorriso paciente e profundo que recebera no deserto quando o mundo parecia só pedra e sonho.


— Não estou plantando só uma árvore, querida — a voz de Hanna era suave, mas carregada de todas as raízes que agora a sustentavam. — Estou plantando uma pergunta. E uma resposta.


A garota fitou-a, confusa. Mas Hanna já vira: no olhar da adolescente, brilhava a mesma fome de beleza que um dia a levara ao kibutz. Enquanto a romãzeira jovem tremia levemente na brisa, suas folhas minúsculas projetavam as primeiras sombras frágeis sobre o concreto. Eram manchas de futuro.


Boaz não estava morto. Estava ali, na pergunta que se repetia, no gesto que se transmitia, na sombra que nascia para cobrir não só corpos, mas destinos. O kibutz Rimonim continuava a florescer no deserto. E Jerusalém, lentamente, aprendia a ser terra boa.

A Trama dos Encontros

A Trama dos Encontros


Jerusalém não se entrega ao primeiro olhar. Ela se revela nas frestas, nos cheiros que grudam na pele, no eco de passos sobre pedras gastas por séculos de sandálias, botas e desesperos. O Professor Arnaldo Sixo, filólogo de alma inquieta, sabia disso. Não bastava decifrar textos mortos; ele queria ler a cidade viva, aquela que respirava no mercado Mahane Yehuda ao amanhecer, quando o ar ainda carregava o orvalho da noite e o primeiro café turco, espesso como breu, começava a ferver nas bancas. Ali, entre montes de especiarias que tingiam o ar de açafrão e cardamomo, entre gritos em hebraico, árabe, armênio, inglês truncado, ele se perdia de propósito. Não era turista, era um caçador de nuances. Comprar um terço de madeira de oliveira de um velho cristão, regatear um pote de cerâmica com uma mulher de véu bordado, aceitar um chá de menta doceíssimo de um judeu sefardita – eram gestos que tentavam capturar o indizível daquele lugar. Jerusalém era um organismo pulsante, um caldo onde fervilhavam deuses antigos, ódios recentes, esperanças frágeis e o comércio implacável da sobrevivência. Nas vielas da Cidade Velha, o sagrado esbarrava no prosaico: o som do muezin misturava-se ao tilintar de moedas; o aroma de incenso de uma procissão grega cruzava com o cheiro de cebola frita de uma barraca árabe; a sombra severa de um rabino hasteava-se diante de uma loja de souvenirs kitsch. Sixo caminhava, observava, sentia o peso dessa coexistência tensa, bela e fatigada. Era uma filologia do concreto, uma gramática escrita em olhares, gestos contidos, silêncios que falavam mais que discursos.


A viagem ao norte, para Katzrin, nas Colinas de Golã, surgiu como um súbito desvio na partitura. Deixar a complexidade densa de Jerusalém pela vastidão agreste da fronteira com a Síria foi como passar de um salão abarrotado para um deserto ventoso. A paisagem, imponente e melancólica, falava de guerras e ausências. O céu pesado despejou sua carga de água quando ele, num impulso de beleza imprudente, parou o carro no acostamento. O pôr-do-sol rasgava as nuvens escuras sobre a Galileia, um espetáculo de fogo e melancolia que o arrancou do volante, câmera em punho. A beleza, porém, escondia uma armadilha. A terra fina do acostamento, amolecida pela chuva implacável, engoliu as rodas como areia movediça. O pânico foi uma serpente fria subindo pela espinha. Chuva batendo no teto, escuridão engolindo a paisagem, silêncio absoluto – só o som de seu próprio coração, acelerado, no vácuo da solidão. Longe de tudo, num lugar onde os mapas mostravam linhas vermelhas de perigo, preso numa lata de metal. A imensidão, antes grandiosa, transformara-se numa cela úmida. Cada gota de chuva era um martelo no seu isolamento.


Foi então que a figura surgiu, quase um fantasma na névoa e no aguaceiro: um pastor, alto, envolto em roupas escuras, empurrando um pequeno rebanho de ovelhas por um caminho invisível no alto da colina. Um druso. Sixo correu, escorregando na lama, gritando palavras inúteis em português, inglês, qualquer coisa. A comunicação foi um balé de gestos desesperados, olhares que atravessavam a cortina de água. O pastor parou. Não sorriu, não falou. Apenas assentiu, com uma calma que parecia brotar das próprias pedras da montanha. A ajuda não veio dele, diretamente, mas da sua rede invisível, tecida naquele território áspero. Horas depois, quando a noite já era um manto úmido e a esperança minguava, os faróis de um carro cortaram a escuridão. Era Arned. Desceu com uma solidez prática, examinou o carro atolado com um olhar perito, sem alarde. O reboque, os cabos, a luta surda contra a terra traiçoeira e a chuva teimosa. E quando o carro finalmente se libertou com um ronco de alívio, Arned olhou para Sixo sob a luz fraca do farol. "Você", disse, um lampejo de reconhecimento cruzando seu rosto molhado. "Compraste um tapete do meu pai. Em Jerusalém. Um tapete grande, vermelho e azul." O tapete. Aquele objeto comprado quase por capricho, num dia comum, numa barraca qualquer do mercado, fora a venda que salvara a semana magra da família de Arned. O gesto casual do professor ecoara no destino de outros, e agora voltava, materializado naquela figura sólida que o arrancara do atoleiro. O jantar na casa humilde de Arned, mais tarde, foi um banquete de humanidade, de histórias sussurradas sob o teto baixo, do sabor reconfortante de uma comida simples partilhada no calor da gratidão.


De volta a Jerusalém, o reencontro com a cidade foi diferente. O alívio da sobrevivência misturava-se ao aborrecimento mundano: o carro alugado, arranhado, coberto de lama e cicatrizes da aventura. Na locadora, o funcionário anotava os estragos com a frieza de um escriba. O preço da liberdade seria salgado. Até que o dono do estabelecimento, atraído pelo burburinho, aproximou-se. Seus olhos percorreram os documentos – Arnaldo Sixo – e algo mudou. Um tremor, uma luz súbita. "Você...", a voz dele vacilou. "Você escreveu uma carta. Para minha filha. Há meses." A carta de recomendação. Um gesto burocrático, quase esquecido por Sixo, uma semente lançada ao vento do acaso. Aquela semente germinara: a filha do homem ganhara uma bolsa de estudos na Universidade Hebraica, o sonho de uma vida. O dono da locadora, endurecido pelo comércio, pelo cálculo diário, desfez-se ali mesmo. Agarrou as mãos do professor, palavras de gratidão brotando como fonte em terra seca. "Coincidência?", perguntou, mas seus olhos marejados negavam. "Hoje começa Chanucá... a festa das luzes. Lembramos o milagre do azeite." Ele olhou para Sixo, para o carro avariado, para a fatura que deixaria de existir. "Mas o maior milagre, professor, às vezes, é encontrar o fio que nos liga no meio do escuro."


Sixo saiu para a rua. Jerusalém noturna pulsava ao seu redor, mais densa, mais verdadeira. As luzes de Chanucá começavam a brilhar nas janelas, pequenas chamas amarelas desafiantes na escuridão. Ele sentiu, não como pensamento, mas como uma verdade inscrita na própria carne: o tapete comprado, a carta escrita, o pastor na colina enevoada, as mãos fortes de Arned na lama, os olhos úmidos do dono da locadora... Não eram acasos soltos. Eram nós. Nós numa imensa, invisível e resistente teia. Uma teia tecida de gestos mínimos, encontros breves, escolhas aparentemente insignificantes que, vistas de longe, formavam um desenho de pertença. O verdadeiro milagre não estava apenas no azeite que durou oito dias num templo antigo. Estava ali, naquele instante, na rede humana que o sustentara quando o chão literal e existencial cedeu. O milagre era a trama. O milagre era estar, sem saber, irremediavelmente preso – e salvo – por ela. O frio da noite não o tocou. Trazia dentro de si o calor modesto, inesperado e profundo da pertença. Jerusalém, afinal, não era apenas pedra e história. Era essa teia frágil e indestrutível, esse milagre cotidiano de estarmos, uns aos outros, inexplicavelmente ligados.

Safed, onde o vento reza

 Há cidades que não se caminham — se atravessam como se atravessa um sonho, um sonho que não começa no momento em que se chega nem termina q...