segunda-feira, 28 de julho de 2025

O Plantador de Sombras

Cinquenta anos. O vento do Neguev soprava sobre o kibutz Rimonim trazendo na boca seca o sabor salgado da memória. Cinco décadas desde que as primeiras mãos – rachadas pelo sol, firmes pela utopia – cravaram estacas no solo pedregoso. Simone, um dos fundadores cujo nome o kibutz carregava como uma bandeira desbotada, já não estava entre eles. Mas sua sombra dançava nas folhas das romãzeiras, nas copas dos eucaliptos, no murmúrio das mangueiras regando fileiras de morangos rubros. O deserto, outrora soberano, recuara. Em seu lugar, um tapete vivo: buganvílias explodindo em roxo contra paredes caiadas, caramanchões de jasmim perfumando o crepúsculo, e as romãs – sempre as romãs – penduradas como lanternas de rubi nos galhos retorcidos.


Hanna chegou com o grupo de estrangeiros, mas seus olhos eram de quem desembarcava em Nárnia. Jerusalém, sua cidade, era um organismo de concreto: prédios que arranhavam o céu, ruas asfixiadas pelo trânsito, praças magras onde as árvores eram ornamentos raros, luxo de bairros dourados. Ali, porém, a natureza não era adereço – era respiração. Era o ar que se bebia sob a sombra generosa de uma figueira centenária. Era o chão que estremecia com o peso das romãs caídas. A máquina fotográfica na mão de Hanna tremia. Cada clique era um roubo de beleza, uma tentativa desesperada de levar aquela epifania verde de volta para o cinza.


Foi ao virar uma esquina, onde um jacarandá adulto derramava flores lilases sobre o caminho, que ela o viu: Boaz. Setenta e dois anos curvados sobre a terra como um pássaro de asas cansadas. Seus joelhos fincavam-se no solo úmido, as mãos – nodosas, fortes, sulcadas de veias como mapas de rios secos – acariciavam uma muda frágil. A cena tinha a solenidade de um ritual antigo.


— O senhor está plantando uma árvore? — a voz de Hanna soou pequena no silêncio sagrado do gesto.


Boaz ergueu o rosto lentamente. Seus olhos, da cor da azeitona madura, fitaram-na sem surpresa, como se ela fosse parte esperada daquele lugar. Enxugou as mãos num pano amarrotado, estendeu a direita – áspera, quente, cheirando a terra e suor honesto.


— Boaz. Um dos que viram a primeira romãzeira dar flor aqui — disse, o sorriso revelando dentes espaçados, amarelados pelo tempo, mas firmes. — E você, pequena? De onde vem esses olhos famintos de verde?


Hanna engoliu o encanto. Contou-lhe da cidade de pedra, dos parques murados dos ricos, das ruas sem árvores onde o asfalto derretia no verão. Falou da falta que uma sombra faz quando a alma esquenta de solidão.


— Então sua cidade está doente, menina — Boaz cortou o ar com a voz rouca. — Aqui, a sombra não tem dono. É como o ar: de todos. Plantamos para o vizinho, para o estrangeiro, para o neto que ainda vai nascer. — Apanhou um punhado de terra, deixou-o escorrer pelos dedos. — Veja esta muda. Parece frágil, não? Mas suas raízes vão furar a pedra, buscar água no úmido que ninguém vê. Vai crescer e dar sombra a quem nunca me viu plantar. Isso é fé.


As palavras de Boaz fincaram-se em Hanna como raízes em terra virgem. Ao voltar para Jerusalém, a cidade revelou-se outra. Não mais apenas funcional, mas ferida. Ela via agora as cicatrizes: os bairros periféricos, desérticos de verde, onde as crianças brincavam no asfalto quente; as praças públicas, cimentadas e hostis; o contraste obsceno entre os jardins privados, opulentos de vida, e as calçadas estéreis. A pergunta de Boaz ecoava: "O que mais vale: um banco de mármore ao sol, ou um banco de madeira sob uma árvore?"


Hanna tornou-se uma guerrilheira do verde. Fundou a "Associação das Sombras". Mobilizou vizinhos, enfrentou a prefeitura com relatórios densos e olhos ardentes. Plantaram mudas em terrenos baldios transformados em bosques de bairro. Floresceram canteiros em fendas de concreto. Até em telhados cinzentos surgiram jardins suspensos, desafiantes. Cada árvore era uma resposta ao velho do kibutz. Cada folha nova, um telegrama de gratidão.


Os anos teceram uma amizade robusta entre a jovem urbana e o plantador do deserto. Hanna voltava a Rimonim sempre que podia. Sentava-se com Boaz sob a figueira colossal que ele plantara trinta anos antes. Bebiam suco de romã fresco, azedo e doce como a vida, enquanto ele contava histórias dos primeiros tempos: as noites sob barracas, a luta contra as tempestades de areia, a alegria desmedida da primeira florada.


— A árvore mais teimosa é a que dá a melhor sombra, Hanna — ele dizia, os olhos perdidos no horizonte onde o deserto ainda espreitava.


Quando a notícia da morte de Boaz chegou, Hanna estava plantando uma acácia em um bairro operário. A pá caiu de suas mãos. A dor foi física, como se uma raiz profunda tivesse sido arrancada de seu peito. Chorou o homem, mas chorou também o símbolo: o último elo vivo com os pioneiros que desafiaram o nada.


Na manhã seguinte, desceu à praça do seu próprio bairro – um quadrado árido de concreto, herança de um urbanismo cego. Escolheu um canto ensolarado, onde as mães se abrigavam do sol com guarda-chuvas. Cavou. A terra era dura, rebelde, cheia de entulho invisível. Suou, como Boaz suara no Neguev meio século antes. Plantou uma muda de romãzeira – a variedade "Rimonim", a mesma do kibutz.


Enquanto a água escorria do regador, lavando o pó das folhas tenras, uma adolescente aproximou-se. Uma câmera pendurada no pescoço, os olhos curiosos e ávidos, como os de Hanna diante de Boaz, tantos anos atrás.


— A senhora está plantando uma árvore? — a pergunta ecoou no ar quieto da manhã.


Hanna dobrou a mangueira com um gesto que era ritual. Enxugou as mãos na calça, depois o rosto, sentindo a terra misturada às lágrimas secas. Sorriu. Era o mesmo sorriso paciente e profundo que recebera no deserto quando o mundo parecia só pedra e sonho.


— Não estou plantando só uma árvore, querida — a voz de Hanna era suave, mas carregada de todas as raízes que agora a sustentavam. — Estou plantando uma pergunta. E uma resposta.


A garota fitou-a, confusa. Mas Hanna já vira: no olhar da adolescente, brilhava a mesma fome de beleza que um dia a levara ao kibutz. Enquanto a romãzeira jovem tremia levemente na brisa, suas folhas minúsculas projetavam as primeiras sombras frágeis sobre o concreto. Eram manchas de futuro.


Boaz não estava morto. Estava ali, na pergunta que se repetia, no gesto que se transmitia, na sombra que nascia para cobrir não só corpos, mas destinos. O kibutz Rimonim continuava a florescer no deserto. E Jerusalém, lentamente, aprendia a ser terra boa.

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