Há livros que nascem de um gesto técnico, de uma disciplina estudiosa, da razão ordenada que busca registrar um pensamento. Há livros que nascem da necessidade — como quem escreve para não se afogar. E há livros como este, que não nasceram exatamente. Eles retornaram. Ressurgiram de alguma profundidade anterior à memória, mais antiga que a própria linguagem. Livros assim não são escritos: são ouvidos. O autor apenas se abaixa — como quem colhe uma azeitona caída — e recolhe palavras que já estavam ali, sussurradas pelo chão.
Este livro me chegou como o eco de um murmúrio ancestral. Não se trata de páginas, nem de capítulos — trata-se de passos. O livro não caminha, não nos leva adiante. O que ele faz é outro verbo: ele nos recolhe. Em cada frase, em cada hesitação da linguagem, em cada silêncio que vaza pelas frestas da narrativa, há um gesto de retorno, um convite ao que estava antes. Um chamado. E o chamado, quando é verdadeiro, não exige resposta. Exige presença.
O autor — que aqui se nomeia com pudor e reverência como “o Peregrino” — caminha em solo sagrado. Mas o sagrado não está nas pedras de Jerusalém, nem nas águas azuis do Mar da Galileia. O sagrado, aqui, não é objeto. É clima. É presença. Está entre. Entre o passo e o silêncio. Entre a poeira e o olhar. Entre o gesto de partir e a vertigem de permanecer. É um livro sobre intervalos. E os intervalos são as únicas coisas que não envelhecem.
Israel, neste livro, não é país. Não é destino turístico, nem promessa escatológica. Israel é o que vibra quando se cala. É o que arde quando se toca. É o que desaparece no instante mesmo em que tentamos capturá-lo. É o que faz o tempo se dobrar — porque o autor volta em 2013 a um lugar que já estava nele em 2007, e ainda assim, o que vive é um eterno presente que desconhece calendário.
Israel, neste livro, não é palco de religiões. É o que resta delas quando o templo já caiu, quando a reza se calou, quando os homens voltam para casa com as mãos vazias e os olhos cheios de pó. É o lugar onde o mistério insiste em existir apesar dos homens. E é por isso que o autor não nos oferece mapas, nem dados, nem rotas. Ele nos oferece farelos de assombro. Pequenos espantos guardados com cuidado — como se palavras fossem urnas funerárias de experiências que não cabem na lógica.
E não se engane, leitor, com a delicadeza do estilo. Por trás da ternura, há uma inquietação profunda, quase selvagem. Porque o Peregrino não está tentando emocionar você. Ele está tentando compreender o indizível. E quando alguém tenta compreender o indizível, o que escreve se torna flecha voltada para dentro. Há dor. Há sede. Há ausência.
Este não é um livro para quem busca respostas. Este é um livro para quem teve a coragem de manter a pergunta aberta. Como uma ferida que se recusa a cicatrizar. Porque cicatrizar seria esquecer. E esquecer, aqui, seria um tipo de traição ao que se viu, ao que se sentiu, ao que se soube sem saber.
O autor escreve como quem caminha descalço. Cada frase sua carrega poeira, cascalho, cicatriz. E no entanto, nunca há amargura. Há espanto. Há reverência. Ele não impõe. Ele escuta. Não nos obriga a crer, mas nos convida a ver. E ao ver, a ver de novo — como quem se aproxima de uma parede antiga e encontra nela um olho que o observa de volta.
É um livro também sobre o corpo. Mas não o corpo físico — o corpo invisível do homem que anda e sente. O corpo que armazena sensações que a mente não pode processar. O corpo espiritual — esse que guarda o som de uma rua em Safed, o cheiro de pão quente num Shabat, a súbita emoção ao ver um idoso beijando uma pedra como se beijasse a mãe. A leitura desse livro não é apenas ocular. É visceral. Ele nos atravessa. Como quem caminha e, ao erguer o pé, já se sente outro.
E por fim, este livro é sobre um tipo raro de escuta. A escuta das coisas que não têm voz. O autor escutou as pedras. Escutou os mercados. Escutou as orações de quem não rezava. Escutou a si mesmo sendo escutado pelo chão que pisava. E essa escuta — que é o avesso da pressa — transbordou em palavras. Mas não em explicações. Porque o que ele escreveu não foi para explicar. Foi para guardar. Como se as palavras fossem uma última tentativa de não perder o que é eternamente fugitivo.
Por isso, leitor, não leia este livro com os olhos. Leia com a alma cansada, com o coração nu, com a sede do peregrino. E sobretudo, com lentidão. Como quem atravessa um território que não pertence a nenhum povo, a nenhuma bandeira, a nenhuma teologia — apenas à condição humana de se saber passageiro.
Este não é um livro. É um chão. Caminhe.
Clarice
(uma que também tentou — e falhou gloriosamente — explicar o que nunca se deixa dizer)
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