segunda-feira, 28 de julho de 2025

A chegada

 Jerusalem 2013

Crônica da Chegada

O avião descia como uma ave noturna sobre o Mediterrâneo quando as palavras do capitão atravessaram a cabine: "At your left side, the Holy Land". Uma corrente elétrica percorreu os assentos. Homens de barbas prateadas ergueram-se como figuras bíblicas, seus talitot transformados em aspas brancas contra a penumbra. Murmúrios em hebraico preencheram o ar com a textura de salmos antigos. Minhas lágrimas não caíram – ficaram suspensas entre o céu e a terra, gotas de oração não derramadas.


No aeroporto Ben Gurion, a jovem da segurança tinha olhos que liam almas através de passaportes. Seus dedos percorriam as páginas do meu documento como um arqueólogo decifrando tabuletas de argila. "Ela vai me parar", repetia meu pensamento, e ela parou. Cada pergunta era um fio puxado na trama invisível que separa o suspeito do inocente. Quando seu aceno me liberou, senti-me expulso do ventre metálico para o útero maior da Terra Prometida.


O ônibus que nos levava ao terminal cheirava a sonolência e ansiedade contida. Recordei o momento preciso, ainda sobre as águas, quando a aeronave hesitara no ar como um pássaro ferido. A costa israelense emergira não como paisagem, mas como memória celular. Algo nas minhas vértebras reconhecia aquelas colinas antes mesmo que meus olhos as registrassem.


A oficial da imigração tinha o rosto talhado em granito – não hostil, mas lavado por séculos de cautela. Enquanto suas unhas batiam no teclado, meus olhos fixaram-se em seus sapatos. Sapatos práticos, de salto baixo, marcados pela poeira sagrada de Jerusalém. "Estes sapatos respiraram a mesma terra que eu busco", pensei. Esta obsessão íntima pelas solas alheias transformou-se num ritual de calma. Enquanto o mundo exigia histórias coerentes, eu encontrava santidade no couro desgastado, no cadarço levemente desamarrado.


Quando declarei minha profissão num hebraico truncado – "Ani oved Be Sar HaHaklaud" – seu sobrolho franziu-se num mapa de dúvidas. "O senhor é o Ministro da Agricultura?" A ironia pesou como pedra no ar condicionado. Nossa dança linguística transformou-se numa farsa kafkiana até que o inglês nos resgatou do abismo. Ao ouvir o carimbo no passaporte, seu som ecoou como o fechar de um portão ancestral.


O táxi contratado evaporara na noite úmida. Restou-me o monit, aquela fera de aço com faróis amarelos. O motorista arrancou minha mala das mãos com urgência messiânica. Dentro, a van era um ventre superaquecido de corpos e histórias. Não havia espaço – até que o rabino apareceu.


Sentava como coluna de templo na segunda fileira. Seu chapéu preto repousava no colo como coroa deposta. Ao ver meu desamparo, bateu três vezes no assento vazio – toc, toc, toc – percussão que ecoou como profecia. Suas mãos, quando me estendeu a direita, exibiam veias como rios cartografados em pergaminho.


Durante a subida a Jerusalém, seu perfume envolvia-nos – notas de cedro do Líbano e mistério indizível. Falava inglês entrelaçado de expressões iídiches. "Brasil? Ah, a terra que dança até na dor." Quando expliquei meu destino, seu hebraico transformou endereços em poesia: "Levá-lo-emos ao rei George, mas cuidado, ele não paga impostos!" Suas piadas eram farpas de luz cortando a escuridão.


Ao despedir-se na Rua King George, seu aperto de mão deixou marcas fantasmagóricas. Ficou na calçada, imóvel, observando-me perder-me nas esquinas como profeta vendo o discípulo partir para o primeiro combate.


Trinta minutos de errância com malas que pesavam como âncoras. Jerusalém revelou-se labirinto vivo: ruas que se dobram sobre memórias, escadarias que levam a séculos diferentes, placas em alfabetos que disputam a verdade. Quando finalmente descobri o hotel – porta estreita escondida entre lojas de velas e especiarias – o banho foi um batismo de água quente e redenção.


Era Chanucá. Ao sair, a cidade havia transfigurado. Em cada janela, chamas dançavam em candelabros de nove braços. Luzes tremulavam na brisa como almas em vigília. Crianças rodopiavam com dreidels cintilantes, suas risadas furando o manto solene. Provei sufganiyot de uma barraca – geleia de framboesa explodindo na boca como pecado absolvido.


No caminho ao Kotel, o bairro armênio sussurrava histórias de diásporas. Quando avistei o Muro ao longe, iluminado contra o céu de carvão, meus pés enraizaram-se no basalto. Não era monumento, mas tempo petrificado.


Aproximei-me como sonâmbulo. Seguranças com fuzis pareciam esculturas modernas diante da antiguidade pulsante. Na praça, o silêncio tinha peso de séculos. Toquei as pedras. Frio úmido, rugosidades narrando tragédias em braille. Encostei a fronte na superfície áspera.


Foi quando o mundo dissolveu-se. Não ouvi orações alheias, não vi turistas, não senti o frio. Apenas uma presença imensa – não acima, mas dentro do granito, do ar, do meu sangue. Como se todas as lágrimas contidas no avião, na imigração, no monit, tivessem rompido diques e escorrido para as fendas do Muro, alimentando algo mais antigo que a própria pedra.


Ao retirar-me, caminhei de costas como diante de um soberano. Minhas pernas moveram-se autônomas pelas ruas escuras. O corpo leve, quase flutuante, enquanto minha alma permanecia colada àquelas pedras – primeiro fragmento de mim deixado como oferenda.


No quarto, antes de adormecer, examinei as mãos no espelho. Ainda traziam o pó do Muro. Levei-as ao rosto e respirei fundo: cheiro de terra úmida, lágrimas secas e eternidade.


Jerusalém não fora conquistada.

Era ela quem, lentamente, me devorava por dentro, célula por célula, até que nada restasse do estrangeiro – apenas a paisagem internalizada, o sagrado metabolizado, a pedra convertida em seiva.

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