A Trama dos Encontros
Jerusalém não se entrega ao primeiro olhar. Ela se revela nas frestas, nos cheiros que grudam na pele, no eco de passos sobre pedras gastas por séculos de sandálias, botas e desesperos. O Professor Arnaldo Sixo, filólogo de alma inquieta, sabia disso. Não bastava decifrar textos mortos; ele queria ler a cidade viva, aquela que respirava no mercado Mahane Yehuda ao amanhecer, quando o ar ainda carregava o orvalho da noite e o primeiro café turco, espesso como breu, começava a ferver nas bancas. Ali, entre montes de especiarias que tingiam o ar de açafrão e cardamomo, entre gritos em hebraico, árabe, armênio, inglês truncado, ele se perdia de propósito. Não era turista, era um caçador de nuances. Comprar um terço de madeira de oliveira de um velho cristão, regatear um pote de cerâmica com uma mulher de véu bordado, aceitar um chá de menta doceíssimo de um judeu sefardita – eram gestos que tentavam capturar o indizível daquele lugar. Jerusalém era um organismo pulsante, um caldo onde fervilhavam deuses antigos, ódios recentes, esperanças frágeis e o comércio implacável da sobrevivência. Nas vielas da Cidade Velha, o sagrado esbarrava no prosaico: o som do muezin misturava-se ao tilintar de moedas; o aroma de incenso de uma procissão grega cruzava com o cheiro de cebola frita de uma barraca árabe; a sombra severa de um rabino hasteava-se diante de uma loja de souvenirs kitsch. Sixo caminhava, observava, sentia o peso dessa coexistência tensa, bela e fatigada. Era uma filologia do concreto, uma gramática escrita em olhares, gestos contidos, silêncios que falavam mais que discursos.
A viagem ao norte, para Katzrin, nas Colinas de Golã, surgiu como um súbito desvio na partitura. Deixar a complexidade densa de Jerusalém pela vastidão agreste da fronteira com a Síria foi como passar de um salão abarrotado para um deserto ventoso. A paisagem, imponente e melancólica, falava de guerras e ausências. O céu pesado despejou sua carga de água quando ele, num impulso de beleza imprudente, parou o carro no acostamento. O pôr-do-sol rasgava as nuvens escuras sobre a Galileia, um espetáculo de fogo e melancolia que o arrancou do volante, câmera em punho. A beleza, porém, escondia uma armadilha. A terra fina do acostamento, amolecida pela chuva implacável, engoliu as rodas como areia movediça. O pânico foi uma serpente fria subindo pela espinha. Chuva batendo no teto, escuridão engolindo a paisagem, silêncio absoluto – só o som de seu próprio coração, acelerado, no vácuo da solidão. Longe de tudo, num lugar onde os mapas mostravam linhas vermelhas de perigo, preso numa lata de metal. A imensidão, antes grandiosa, transformara-se numa cela úmida. Cada gota de chuva era um martelo no seu isolamento.
Foi então que a figura surgiu, quase um fantasma na névoa e no aguaceiro: um pastor, alto, envolto em roupas escuras, empurrando um pequeno rebanho de ovelhas por um caminho invisível no alto da colina. Um druso. Sixo correu, escorregando na lama, gritando palavras inúteis em português, inglês, qualquer coisa. A comunicação foi um balé de gestos desesperados, olhares que atravessavam a cortina de água. O pastor parou. Não sorriu, não falou. Apenas assentiu, com uma calma que parecia brotar das próprias pedras da montanha. A ajuda não veio dele, diretamente, mas da sua rede invisível, tecida naquele território áspero. Horas depois, quando a noite já era um manto úmido e a esperança minguava, os faróis de um carro cortaram a escuridão. Era Arned. Desceu com uma solidez prática, examinou o carro atolado com um olhar perito, sem alarde. O reboque, os cabos, a luta surda contra a terra traiçoeira e a chuva teimosa. E quando o carro finalmente se libertou com um ronco de alívio, Arned olhou para Sixo sob a luz fraca do farol. "Você", disse, um lampejo de reconhecimento cruzando seu rosto molhado. "Compraste um tapete do meu pai. Em Jerusalém. Um tapete grande, vermelho e azul." O tapete. Aquele objeto comprado quase por capricho, num dia comum, numa barraca qualquer do mercado, fora a venda que salvara a semana magra da família de Arned. O gesto casual do professor ecoara no destino de outros, e agora voltava, materializado naquela figura sólida que o arrancara do atoleiro. O jantar na casa humilde de Arned, mais tarde, foi um banquete de humanidade, de histórias sussurradas sob o teto baixo, do sabor reconfortante de uma comida simples partilhada no calor da gratidão.
De volta a Jerusalém, o reencontro com a cidade foi diferente. O alívio da sobrevivência misturava-se ao aborrecimento mundano: o carro alugado, arranhado, coberto de lama e cicatrizes da aventura. Na locadora, o funcionário anotava os estragos com a frieza de um escriba. O preço da liberdade seria salgado. Até que o dono do estabelecimento, atraído pelo burburinho, aproximou-se. Seus olhos percorreram os documentos – Arnaldo Sixo – e algo mudou. Um tremor, uma luz súbita. "Você...", a voz dele vacilou. "Você escreveu uma carta. Para minha filha. Há meses." A carta de recomendação. Um gesto burocrático, quase esquecido por Sixo, uma semente lançada ao vento do acaso. Aquela semente germinara: a filha do homem ganhara uma bolsa de estudos na Universidade Hebraica, o sonho de uma vida. O dono da locadora, endurecido pelo comércio, pelo cálculo diário, desfez-se ali mesmo. Agarrou as mãos do professor, palavras de gratidão brotando como fonte em terra seca. "Coincidência?", perguntou, mas seus olhos marejados negavam. "Hoje começa Chanucá... a festa das luzes. Lembramos o milagre do azeite." Ele olhou para Sixo, para o carro avariado, para a fatura que deixaria de existir. "Mas o maior milagre, professor, às vezes, é encontrar o fio que nos liga no meio do escuro."
Sixo saiu para a rua. Jerusalém noturna pulsava ao seu redor, mais densa, mais verdadeira. As luzes de Chanucá começavam a brilhar nas janelas, pequenas chamas amarelas desafiantes na escuridão. Ele sentiu, não como pensamento, mas como uma verdade inscrita na própria carne: o tapete comprado, a carta escrita, o pastor na colina enevoada, as mãos fortes de Arned na lama, os olhos úmidos do dono da locadora... Não eram acasos soltos. Eram nós. Nós numa imensa, invisível e resistente teia. Uma teia tecida de gestos mínimos, encontros breves, escolhas aparentemente insignificantes que, vistas de longe, formavam um desenho de pertença. O verdadeiro milagre não estava apenas no azeite que durou oito dias num templo antigo. Estava ali, naquele instante, na rede humana que o sustentara quando o chão literal e existencial cedeu. O milagre era a trama. O milagre era estar, sem saber, irremediavelmente preso – e salvo – por ela. O frio da noite não o tocou. Trazia dentro de si o calor modesto, inesperado e profundo da pertença. Jerusalém, afinal, não era apenas pedra e história. Era essa teia frágil e indestrutível, esse milagre cotidiano de estarmos, uns aos outros, inexplicavelmente ligados.
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